domingo, janeiro 22, 2017

BEDUÍNO























Histórias são, por natureza, fascinantes. As Mil e Uma Noites, o clássico literário de autor desconhecido (ou de inúmeros autores), é uma prova disso: do quanto uma boa história é capaz até de salvar vidas. E o cinema tem cumprido muito bem este papel ao longo deste último século, como dando continuidade à literatura. Mas é sempre muito bom lembrar que, assim como existe literatura em poesia e em prosa, bem como também ensaística, há também cinema-poesia, um tipo de cinema que não necessariamente tem um compromisso em contar uma história. Assim, ver um filme do Júlio Bressane, além de ser um grande privilégio, é ver uma mostra desse tipo de cinema-poesia.

BEDUÍNO (2016), o novo filme do cineasta, é uma prova de que esse tipo de cinema está muito vivo e pulsante. É até mais radical do que EDUCAÇÃO SENTIMENTAL (2013), o último dele exibido comercialmente, embora seja muito mais agradável de ver pela forma com que mostra, quase em forma de esquetes, as belas imagens e os diálogos fascinantes sobre temas eruditos.

Basta dar uma rápida olhada na filmografia de Bressane para perceber que ele é um autor obcecado pela História. Já fez filmes sobre Oswald de Andrade e Lamartine Babo (que tem uma de suas canções usada nos créditos finais de BEDUÍNO, inclusive), sobre Padre Antônio Vieira, Mário Reis, São Jerônimo, Nietzsche e Cleópatra, além de usar vários textos literários e filosóficos para ilustrar muito do que quer dizer em suas obras, embora muitas vezes – ou na maioria das vezes – essa inclusão não fique muito clara. Mas nem tudo é feito para ser compreendido integralmente. Do mesmo jeito que não é necessário captar todas as referências de um filme de Jean-Luc Godard, por exemplo.

Por isso fazer uma sinopse de BEDUÍNO chega a ser uma tarefa até ingrata. Até porque sinopses são feitas para filmes que contam histórias. Pelo menos, histórias no sentido mais linear e mais tradicional do termo. O que temos em BEDUÍNO é uma sucessão de pequenos segmentos que possuem, sim, uma coesão e uma narração, mas a ligação entre as cenas se faz mais pelas imagens e pelos temas abordados ou citações.

Alessandra Negrini protagoniza pela terceira vez um filme do diretor: os anteriores foram os ótimos CLEÓPATRA (2007) e A ERVA DO RATO (2008). Seu retorno à filmografia de Bressane é mais do que bem-vindo, tanto pela beleza de seu corpo, lindamente fotografado, quanto pela interpretação brilhante que ela confere a cada declamação, com as palavras saindo de sua boca como mel, como se cada palavra fosse extremamente importante. Essa valorização da palavra vem do grande número de leituras e traduções que Bressane fez ao longo de dez anos para a realização desta obra.

Quanto a Fernando Eiras, o ator também já é um colaborador do cineasta, tendo trabalhado com ele em obras como O MANDARIM (1995), DIAS DE NIETZSCHE EM TURIM (2001) e FILME DE AMOR (2003). Seu trabalho no filme é também importante, e ajuda a compor o casal intrigante da "trama". Se é que intrigante é a palavra certa nesse caso. O que importa é que BEDUÍNO nos impressiona pela beleza da forma, mas também pelo passado que evoca, pelo sonho, que é tão importante na própria história.

Sobre essa questão da História e de como a obsessão pelo antigo dialoga com o novo, há uma cena que ilustra muito bem isso. Fernando Eiras diz que adora coisas antigas, ao olhar para o retrato de uma pirâmide usada para fazer sacrifícios; em seguida, Alessandra Negrini coloca óculos escuros e diz que gosta de coisas modernas. E é bem isso que é o cinema de Bressane: um cinema moderno mas que evoca com paixão obras e temas clássicos.

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