segunda-feira, agosto 22, 2016

A FRENTE FRIA QUE A CHUVA TRAZ























Há algo de bem maldito na obra de Neville de Almeida, por mais que ele tenha no currículo sucessos gigantes de bilheteria, como A DAMA DO LOTAÇÃO (1978) e OS SETE GATINHOS (1980). Acontece que esses filmes foram feitos em uma época em que ser transgressor estava na moda, e rendia muito mais nas bilheterias. Aos poucos, o aspecto desbocado dos diálogos e o cenário sujo foram sendo rejeitados pelo grande público, principalmente com a mudança de cenário para o chamado Cinema da Retomada, em meados da década de 1990.

Por isso NAVALHA NA CARNE (1997), até então seu último filme, não foi bem-recebido. Depois de um hiato de quase 20 anos, eis que o saudoso Neville retorna com A FRENTE FRIA QUE A CHUVA TRAZ (2015), novamente em uma adaptação de uma peça teatral, escrita por Mario Bortolotto. O aspecto teatral é bem visível e o cineasta não parece se importar muito com isso. A trama se passa quase toda em um único lugar, com exceção de duas sequências, e mais aquelas que mostram o grupo de moças e rapazes ricos saindo de suas casas em direção ao morro carioca, a fim de diversão.

O grupo formado pelas três e mais dois rapazes alugam uma laje na favela e promovem festas regadas a sexo, álcool e drogas. Curiosamente, por mais que o filme seja bem desbocado, o sexo e a nudez, que se faziam presentes de forma mais gráfica e generosa em obras anteriores do cineasta, aqui aparecem bem tímidos, como que sinal dos tempos, ou necessidade de se adaptar de alguma forma aos novos rumos de nossa cinematografia, que, com raras exceções, se mantém muito mais comportada do que nas décadas em que Neville estava no auge.

Quem se destaca no elenco de A FRENTE FRIA QUE A CHUVA TRAZ é Bruna Linzmeyer, que interpreta uma jovem marginal que é aceita pelo grupo de playboys e patricinhas, mesmo não tendo dinheiro e às vezes chegando até a aceitar fazer programa para conseguir mais uma dose. Não sabemos direito qual é o drama de vida de Amsterdan, nome de sua personagem, mas é fácil aceitá-la como alguém mais digno do que qualquer outro que está ali naquele lugar. Até porque o cineasta carrega um pouco nas tintas no terço final, quando exagera na composição maniqueísta dos demais, em comparação com a nobreza decadente de Amsterdan. É como se ela fosse o alter-ego do cineasta, alguém maldito que está tentando jogar o jogo sujo de quem tem dinheiro.

A verdade é que, por mais que a fotografia pareça mais bonita e mais limpa do que estamos acostumados a ver nas obras de Neville (linda a visão do Rio de Janeiro vista do alto), seu retorno foi muito bem-vindo, por mais que tenha sido em um filme imperfeito e que aparentemente faz algumas concessões. Mas talvez as concessões sejam só aparência mesmo. Provavelmente, dentro de um espaço de tempo consideravelmente grande entre uma obra e outra, seria inevitável uma mudança no estilo e no comportamento do cineasta. Que continua incomodando, sim. Basta deixar a televisão ligada em um volume mais alto (sim, o filme já chegou em DVD) para perceber o quanto os diálogos vão incomodar ou horrorizar os familiares ou a vizinhança. E se Neville continua incomodando, é sinal de que ele continua relevante.

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