quarta-feira, junho 08, 2016

HITCHCOCK/TRUFFAUT























A ideia de Kent Jones, diretor de A LETTER TO ELIA (2010), junto com Martin Scorsese, foi sensacional. Fazer um filme sobre o espetacular livro de entrevistas que o apaixonado François Truffaut idealizou e concretizou junto com o mestre do suspense Alfred Hitchcock. HITCHCOCK/TRUFFAUT (2015) ganha o mesmo título que o livro-referência, considerado por muitos o mais importante livro sobre cinema já escrito. E o legal de tudo é que ele não foi exatamente escrito, mas transcrito, embora muitas das perguntas tenham sido prévia e cuidadosamente preparadas por Truffaut.

O cineasta francês e um dos pais da nouvelle vague estava apenas em seu terceiro longa-metragem quando enviou uma carta para Hitchcock com o convite, e lhe dizendo que o considerava o maior de todos os diretores de cinema. Hitchcock ficou emocionado e topou disponibilizar oito dias para a realização dessa sessão de entrevistas sobre os filmes de sua carreira, analisados em ordem cronológica. Além dos dois, havia uma intérprete e também houve uma ótima sessão de fotos, que pode ser melhor apreciada no livro em questão.

Quem já leu o livro sabe como é saboroso, principalmente se lido logo após a apreciação de cada filme. E poder ouvir um pouco das gravações originais chega a ser emocionante. Há partes do livro que eu havia esquecido, como a descrição de Hitchcock do momento do beijo entre Cary Grant e Ingrid Bergman em INTERLÚDIO (1946), quando Hitch comenta que estava dando ao público o grande privilégio de participar de um ménage à trois com os dois astros na cena em que eles estavam se beijando e a câmera os acompanhando.

Esse erotismo hitchcockiano, tão cheio de fetiches e ousadias, poderia facilmente servir de base para outro documentário, já que pouco se fala da força erótica de JANELA INDISCRETA (1954) e LADRÃO DE CASACA (1955). Mas, em compensação, temos a honra de ver e ouvir Martin Scorsese dissecando cenas de PSICOSE (1960), aos moldes do que ele fez naqueles outros dois documentários, o sobre o cinema americano e o sobre o cinema italiano, e assinalando a importância de PSICOSE para a virada da década, para um novo momento que estava por vir. Bogdanovich completa lembrando os gritos do público na cena do chuveiro quando o filme estreou comercialmente. E a gente fica com um pouco de inveja de quem pôde apreciar essa surpresa sem saber com antecedência nada sobre Norman Bates, antes de esta cena em particular entrar definitivamente no inconsciente coletivo.

UM CORPO QUE CAI (1958) também é outro filme que ganha destaque e uma breve análise, enfatizando a questão da metáfora da nudez e do desejo sexual quando a personagem de Kim Novak chega com o cabelo pintado de loiro em um dos momentos mais mágicos da história do cinema.

Vez ou outra HITCHCOCK/TRUFFFAUT tenta fazer um paralelo entre a carreira de Hitchcock e a de Truffaut, mas nem sempre isso é possível, já que um estava começando e outro estava em um período derradeiro da carreira. Mas, por exemplo, é bom quando o documentário cita a história lendária de quando o pequeno Hitch foi preso a mando do pai, em uma espécie de pegadinha, enquanto o próprio Truffaut foi preso, mas de verdade, também pelo pai, em um instituto correcional, fato utilizado no autobiográfico (ou quase) OS INCOMPREENDIDOS (1959), longa-metragem de estreia do diretor francês.

Também há uma comparação entre os dois com relação ao rigor formal, que existe de maneira bem forte no cinema do Hitchcock, enquanto Truffaut aceitava filmar de maneira mais espontânea, com direito a improvisação, caso de uma cena de JULES E JIM – UMA MULHER PARA DOIS (1962). O rigor de Hitchcock se mostrava tão forte que ele pouco se importava se os atores e atrizes estavam se sentindo desconfortáveis durante a filmagem, como foi o caso da citada cena de beijo de INTERLÚDIO.

No mais, o documentário traz vários nomes excelentes do cinema contemporâneo falando sobre Hitchcock, sobre o livro, sobre sua relação com o autor e sobre sua história com ele. Além de Scorsese, vemos depoimentos dos diretores Wes Anderson, Paul Schrader, Kiyoshi Kurosawa, Arnaud Despleschin, Richard Linklater, Peter Bogdanovich, David Fincher, Olivier Assayas e James Gray, convidados de luxo deste documentário especial, que mereceria uma exibição nos cinemas.

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