terça-feira, janeiro 05, 2016

AS DEUSAS



Há algo de muito pouco palpável em AS DEUSAS (1972). É como se o filme fosse feito de uma matéria próxima daquela que é feita o sonho, sem o peso da materialidade de um cinema mais físico. Poderíamos dizer isso da obra completa de Walter Hugo Khouri, mas talvez em AS DEUSAS esta impressão se instale de maneira mais forte. Havia visto o filme em 2005 em uma gravação do Canal Brasil, mas na revisão é como se eu estivesse vendo um filme inédito. O que se fez da memória daquela primeira vez?

E a riqueza de rever o filme se reforça quando o revemos imediatamente, já que AS DEUSAS se inicia com cortes rápidos de cenas que serão vistas ao longo da narrativa. A mão tocando o tronco da árvore, o olho do coelho assustado, uma mulher loira tomando banho nua no rio, uma escada, as árvores vistas de baixo em tom ameaçador, o nome "Anima", presente na casa em que nossos três personagens ficarão durante um tempo.

Cada elemento em cena tem uma importância toda especial, como a árvore gigante cujos caules se expandem para todos os lados assim que Angela (Lilian Lemmertz) e Paulo (Mario Benvenuti) adentram à casa grande e vazia que lhes foi oferecida como abrigo pela psiquiatra de Angela, Ana, interpretada por uma lindíssima Kate Hansen. A casa e a natureza ao redor seria uma forma de diminuir as crises de depressão de sua paciente.

Curiosamente, porém, a natureza, quando surge nos filmes de Khouri não oferece necessariamente alívio para as angústias da alma. É só lembrar de O ANJO DA NOITE (1974), AS FILHAS DO FOGO (1978) e AMOR VORAZ (1984), justamente os três filmes de horror do diretor. É como se fugir do ambiente urbano se mostrasse ainda pior. A dor na alma se transforma em medo ou algo próximo disso, algo que a mente nem sabe bem distinguir.

Se há uma série de Marcelos em vários filmes centrados em figuras masculinas na obra de Khouri, há também a sua cota de Anas. A Ana de Kate Hansen é uma mulher insegura diante do próprio ofício e da dificuldade em tratar aquela paciente que parece incurável. Ao mesmo tempo, Angela é também fascinante, como o marido afirma em determinado momento, quando complementa que esse é um dos motivos de ele querer continuar com ela, amá-la. Paulo representa também a figura do predador, que é tão comum de encontrar nos trabalhos de Khouri. Tão predador quanto os mais sombrios Marcelos.

AS DEUSAS é também o filme que melhor trabalha o olhar, em closes cheios de intensidade. Como esquecer a primeira vez que Ana chega na casa e a imagem se alterna entre o seu rosto e o rosto de Angela? É como se elas fossem uma só, a morena e a loira, como duplos de filmes de Hitchcock e De Palma, ou como as mulheres de PERSONA, de Ingmar Bergman, a referência mais explícita tanto em AS DEUSAS quanto em AMOR VORAZ. Mas que ainda se manifesta de maneira mais forte neste filme de 1972.

A música de Rogerio Duprat com trechos da Fantasia em Ré Menor de Mozart é de uma beleza ímpar e fantasmagórica. Duprat está para Khouri assim como Badalamenti está para Lynch. Os dois se complementam de uma maneira quase indissociável. Os tons dissonantes do piano de Duprat ajudam a compor o clima de angústia e incômodo crescentes ao longo da narrativa.

Quanto ao sexo, elemento tão presente na obra khouriana, ele, mais uma vez, é tanto uma válvula de escape para a alma, como na cena de sexo a três pós-bebedeira, quanto um elemento desconfortável, como na invasão de Paulo ao quarto de Ana. A reação dela passa um misto de aceitação, vontade e negação, o que pressupõe um estupro. Tudo fica nessa linha tênue entre o prazer e a dor. Ana é pega como um coelho na armadilha daquele casal.

Mas uma das coisas mais impressionantes de AS DEUSAS é não dar explicações sobre suas significações, sobre as intenções dos personagens e, com poucas linhas de diálogo, traçar uma narrativa a partir de olhares, de enquadramentos, de silêncios incômodos, de simbolismos, de ambientes opressores e de um anseio contagiante.

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