quarta-feira, agosto 04, 2010

A BELA DA TARDE (Belle de Jour)



Vendo uma possibilidade, ainda que remota, de que SEMPRE BELA, de Manoel de Oliveira, aporte nos cinemas daqui, quis rever A BELA DA TARDE (1967), obra-prima de Luis Buñuel. Não queria ver a continuação/tributo de Oliveira sem refrescar a memória dos personagens do original. Mas impressionante como o filme cresce com a revisão. Das duas vezes que o vi, uma na televisão, outra em vhs, muitas coisas passaram desapercebidas por mim, principalmente a direção elegante do mestre do surrealismo. Naquela época, início de minha cinefilia, ainda não prestava atenção em certos detalhes formais. Deixava-me viajar mais, tanto que não conseguia entender a cena final, a que Séverine (Catherine Deneuve) olha pela janela. Agora, um pouco mais racional e atento, pude pelo menos fazer a ligação com a sequência que abre o filme. Que dá à obra um aspecto circular, como A ESTRADA PERDIDA, de David Lynch.

A cópia que consegui foi de um arquivo mkv ripado de um blu-ray. Transformada em dvd, ficou linda. E aumenta ainda mais o prazer de ver uma obra de tão alto valor. Se as imagens às vezes parecem um tanto esmaecidas no começo, essa impressão logo se dissipa quando vemos o uso das cores. As roupas coloridas e alguns móveis de decoração se destacam do tom sépia dominante. Claro que é preciso ver mais vezes para perceber mais detalhes. A BELA DA TARDE é um filme que não se esgota. A preferência de Buñuel pela não utilização de música torna o seu trabalho ainda mais instigante, pois o uso do som é cuidadosamente destacado. O som das ruas, dos sapatos de Séverine, dos cascos dos cavalos, do som de chicotes etc. são detalhes que não se desprezam, mas que podem até passar desapercebidos durante a trama.

O filme se inicia com Séverine numa carruagem com o marido. Em determinado momento o marido pede para parar. E ela é submetida a chicotadas e outras humilhações. Corta para cena da mulher sentada na cama de olhos abertos. Vemos que aquilo é um sonho ou desejo dela, uma mulher frígida, que sempre diz 'não' às investidas do próprio marido. Os dois dormem em camas separadas. Daí Séverine fica impressionada com a ideia de ter um bordel na cidade. E ao saber o endereço de um deles, vai parar lá. Como só pode ficar lá de duas às cinco, ela ganha o nome de 'Bela da Tarde' pela dona do lugar, a simpática e compreensiva Madame Anais (Geneviève Page). E nem é preciso dizer que a Bela da Tarde faz um sucesso tremendo no prostíbulo. Até porque ela tem um ar de nobreza que faz a diferença.

Não há aqui uma total desconexão com um fio narrativo convencional, como em obras posteriores, como VIA LÁCTEA (1969) e O FANTASMA DA LIBERDADE (1974). A BELA DA TARDE até pode ser apreciado por quem não está acostumado às loucuras do mestre Buñuel. Seria um excelente ponto de iniciação. Não é para menos que é o seu filme mais conhecido. Mesmo quem nunca viu, já deve ter ouvido falar. E como Buñuel, em sua fase mexicana, já havia demonstrado pleno domínio narrativo, o que ele fez em sua fase francesa foi aprimorar ainda mais o estilo, que já era fantástico. Ele substitui, por exemplo, o suspense e a melodramaticidade de obras como O ALUCINADO (1952) e ENSAIO DE UM CRIME (1955) por um tipo diferente de suspense, mais frio. O pouco espaço que há para o melodramático está no personagem do sujeito apaixonado por Séverine. E só o fato de ele se mostrar violento, já deixa Séverine mais feliz e realizada. Séverine até poderia ser uma personagem de Nelson Rodrigues, nesse sentido. Mas há mais na personagem. E há mais no filme, que ajudou a popularizar o sadomasoquismo no cinema, ainda que o tema tenha sido mais explorado por diretores de filmes exploitation.

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