sábado, novembro 15, 2008

VICKY CRISTINA BARCELONA



Se o cinéfilo fã de Woody Allen já se sente um privilegiado só por ter a certeza de que o seu mestre fará um filme a cada ano, e que seus filmes tardam mas não falham em nossos cinemas, o que dizer de um ano em que não só um mas dois filmes do diretor estréiam nas telas brasileiras? E dois filmes do mais alto nível, como se Allen, ao optar por essa temporada na Europa, tivesse assimilado um pouco da sabedoria e do talento de mestres como Manoel de Oliveira e Claude Chabrol, que, à medida que o tempo passa, vão se tornando mais e mais interessantes. A festa dessa nova fase começou com PONTO FINAL – MATCH POINT (2005), que Allen filmou na Inglaterra e com a presença deslumbrante de Scarlett Johansson. A câmera de Allen – e talvez não só a câmera – se enamorou de Scarlett e ela reapareceu depois na comédia SCOOP – O GRANDE FURO (2006) e pela terceira vez, nesta obra-prima filmada em Barcelona.

A ida de Allen para a Espanha e a presença extra de astros como Javier Barden – o ator mais versátil da atualidade – e Penélope Cruz só ajudaram a enriquecer ainda mais a mistura que gerou VICKY CRISTINA BARCELONA (2008). Depois do hitchcockiano O SONHO DE CASSANDRA (2007), Allen presta um novo tributo ao mestre do suspense numa cena em que uma das personagens é convidada para ir ao cinema e o filme que está passando é À SOMBRA DE UMA DÚVIDA, de Alfred Hitchcock, cujo título caiu como uma luva para a personagem cheia de dúvidas e de dilemas de Rebecca Hall: Vicky, a morena americana que aporta com sua amiga loira Cristina em Barcelona, com objetivos diferentes, mas dispostas a fazer com que a viagem valha a pena.

Vicky é uma mulher prática. Já tem um noivo bem sucedido financeiramente esperando por ela nos Estados Unidos e não quer saber de muitas aventuras. Ela vai a Barcelona com o objetivo de estudar a cultura catalã. Já Cristina (Scarlett Johansson) está aberta a tudo o que vier pela frente, principalmente se for algo excitante e diferente. Por isso ela não pensa duas vezes em aceitar o convite que Juan Antonio (Javier Bardem), um estranho espanhol, faz a elas: um fim de semana numa cidade da Espanha. Ele ainda tem a cara de pau de dizer de imediato que deseja fazer amor com as belas jovens. Enquanto uma não quer, a outra quer, mas as duas acabam indo. O que sucede nessa viagem é uma surpresa para ambas e afetará suas vidas de maneira impactante.

Juan Antonio tem uma filosofia de vida na qual devemos aproveitar ao máximo o nosso tempo na Terra e só o fato de estarmos vivos é motivo de celebração. E já que só vivemos uma vez, aproveitemos, portanto. Essa filosofia e esse prazer de viver de Juan Antonio conquistam Cristina de imediato e aos poucos acaba conquistando também Vicky. Inclusive, um dos momentos mais belos do filme, que me chegou a lembrar a cena de Caetano Veloso em FALE COM ELA, de Pedro Almodóvar, é a cena em que Vicky e Juan Antonio estão escutando a música de um violonista. O som que sai do violão é arrebatador, de uma melancolia tocante, e isso amacia o coração de Vicky. E por razões que o espectador deverá sentir, à medida que a trama vai se desenrolando, a química Vicky-Juan Antonio chega a ser tão ou mais interessante quanto a de Juan Antonio com Cristina e posteriormente com a entrada em cena da personagem perturbada de Penélope Cruz. A cena que tornou o filme famoso na internet é justamente a do beijo na boca de Penélope com Scarlett, feita com uma delicadeza e uma beleza que faz calar a boca de quem duvidava do talento de Woody Allen e tinha profetizado sua decadência, anos atrás.

Apesar de ser um trabalho leve, uma comédia, VICKY CRISTINA BARCELONA é desses filmes que tocam o espectador pelo coração. Não que O SONHO DE CASSANDRA também não toque, mas enquanto esse toca de uma maneira diferente, fazendo-nos cúmplices de um crime, desta vez Allen nos faz cúmplices de um vendaval de sentimentos passionais que não encontrariam lugar melhor do que a Espanha. Parece uma comédia dirigida por Eric Rohmer com toques de Almodóvar, mas com os momentos tipicamente allenianos, como nas cenas em que as personagens de Vicky e Cristina se alternam como alter-egos do cineasta.

Os sentimentos são por natureza conflitantes com a razão, mas por isso mesmo eles acabam por nos fazer refletir sobre a natureza da vida, a razão de se viver, a intensidade e a importância que a vida passa a ter quando se vive um grande amor, ainda que ele só dure um fim de semana ou alguns meses. É Woody Allen deixando um pouco de lado o pessimismo e a acidez usuais e olhando a vida com outros olhos. Um filme de celebração.

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