terça-feira, julho 13, 2004

ANDREI TARKOVSKY EM DOIS FILMES



Nos últimos dias me deu vontade de ver filmes do Tarkovsky, mesmo sabendo que eles são um pouco herméticos. Ainda bem que a sua filmografia saiu completinha em DVD pela Continental. Acho que foi a primeira vez que vi um DVD da Continental que realmente presta, em termos de qualidade de imagem e som. Mas como eles gostam de fazer cagada, todos os extras dos DVDs da Criterion, de onde eles copiaram para fazer a edição nacional, foram colocados em discos à parte, o que encarece bastante a locação, se você quiser alugar os extras também. Mas tudo bem. Melhor do que não lançarem os filmes.

Antes de ver esses dois filmes, só tinha visto um Tarkovsky, SOLARIS (1972), copiado do DVD americano pelo chapa Fabio Ribeiro. Tinha gostado bastante apesar da dificuldade de absorver os simbolismos do filme (se é que são mesmo simbolismos). Ver SOLARIS ajuda a preparar a gente para os outros filmes do diretor.

STALKER

Assim como SOLARIS, STALKER (1979) é mais um exemplar da chamada ficção científica metafísica. Por falar em metafísica, não tinha idéia do quanto Tarkovsky era ligado à espiritualidade. Foda é que se você for entrar de cabeça no filme sem ter lido nada a respeito da trama, é certeza ficar boiando durante os primeiros quarenta minutos sem saber o que diabos está acontecendo. Depois é que a trama vai clareando. Só então ficamos sabendo que os três homens estão penetrando na zona, um lugar proibido para os civis, porque lá é o lugar mágico onde os desejos mais profundos se tornam realidade. Isso num mundo devastado seria uma bênção infinitamente maior. O Stalker do título é um homem sensitivo, uma pessoa especial, que possui misteriosos dons. Apenas o Stalker pode levar pessoas normais para dentro da zona. Antes dos homens entrarem no lugar, o filme é fotografado em preto e branco com tonalidades marron, ajudando a evidenciar o clima de desolação da Terra no futuro. A Terra foi modificada pela queda de um meteorito que destruiu grande parte das cidades e criou a tal zona.

O filme tem umas tomadas impressionantes, como aquele plano-sequüência da câmera passeando lentamente pelos três personagens. As imagens são tão magicamente belas que achei incrível esse filme ter sido realizado com poucos recursos. O filme é bem diferente do que a gente está acostumado a chamar de ficção científica, com quase nada de tecnologia à mostra. Os temas recorrentes do diretor, como a materialização dos desejos e o simbolismo e força da água estão onipresentes no filme. Dizem que esse é o filme mais úmido da história, conforme li numa crítica na Contracampo. A água está presente tanto na chuva, nos rios, na lama, quanto no suor dos corpos dos homens.

É um filme que exige muito do espectador, mas que se visto com paciência e interesse, pode se tornar uma experiência inesquecível. É o tipo de filme que cresce muito depois de visto, quando as cenas ficam ressurgindo em nossa memória. Ah, e aquele final, com a cena da filha do Stalker é sensacional. Para algumas pessoas, STALKER é o melhor filme de Tarkovsky.

O SACRIFÍCIO (Offret - Sacrificatio)

Apesar de ser considerado um filme menor de Tarkovsky, talvez O SACRIFÍCIO (1986) seja o meu preferido. A história do filme lembra o ótimo FIM DE CASO, de Neil Jordan, por causa do homem que abdica de algo que ama muito para cumprir um pacto com Deus. Em O SACRIFÍCIO, esse homem é um patriarca de uma família sueca que está completando 50 anos e que, numa espécie de sonho ou transe, vê na televisão a notícia de uma guerra de proporções apocalíptcas. Segundo a notícia, bombas nucleares iriam destruir o mundo em questão de horas. Sua família entra em desespero e ele, angustiado, pede a Deus que a situação se reverta e que a paz retorne às suas vidas. Então, inesperadamente surge no meio da noite o enigmático carteiro Otto que diz que há uma esperança: ele deve ir até a casa da empregada Maria, que é uma bruxa, e fazer sexo com ela. Ela teria poder de reverter a situação e salvar o mundo.

Eu achei sensacional esse enredo absurdo. E o barato de tudo isso é que Tarkovsky constrói um clima de tensão e apreensão que deixa tudo completamente crível. A cena do terremoto fez tremer até a minha casa. E aquela cena final é muito, mas muito, foda mesmo.

O filme causa um certo estranhamento já no começo pelo filmar tudo de longe, deixando no ar uma sensação incômoda. Acho que só perto de meia hora é que aparece o primeiro close. Seria um filme para ser visto especialmente na telona, mas com boa vontade e um pouco de silêncio, uma tv de 29 polegadas quebra o galho.

O filme tem muitas citações ao livro "Assim Falou Zaratustra", de Nietzsche, especialmente a doutrina do Eterno Retorno. Analisar todas as citações do filme aprofundadamente seria uma tarefa árdua e não é pra qualquer um. Encontrei um site na internet com um estudo de 19 páginas sobre Nietzche em O SACRIFÍCIO. Ainda não li, mas estou com o texto todo impresso aqui pra ler mais tarde. De qualquer forma, não deixa de ser algo arrepiante encontrar um filme que mistura cristianismo (a oração e o sacrifício), bruxaria (a empregada Maria) e paganismo (o anti-Cristo Nietzche). Também chega a ser assustador o mistério em torno de um quadro de Leonardo DaVinci "Adoração dos Magos"(em certa cena do filme, o carteiro diz que morre de medo de Leonardo). Talvez por ser a visita dos reis magos ao menino Jesus um evento também que mistura a magia com o cristianismo. Quanta riqueza e quanta erudição está contida nesse filme de Tarkovsky.

Procurando na internet por cartazes dos filmes do diretor, achei esse excelente site que tem cartazes de seus filmes de várias partes do mundo. Destaque para os cartazes do Japão e da Polônia de O SACRIFÍCIO.

Uma dúvida: por que será que aqui no Brasil as pessoas escrevem Tarkovski (com "i" no final) e nos sites gringos escrevem Tarkovsky (com "y")?


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